O mais famoso dos contos de lobo é também, sem contexto, um dos mais
misteriosos. O que não impede, muito ao contrario, as interpretações
simplistas. Charles Perrault não inventou a tão improvável historia da mãe
entregando a filha às garras do lobo. Como o essencial dos relatos que ele
redige em 1695, provavelmente foi colhido da boca de um lacaio ou serviçal
vindo do interior.
Sem duvida ele trabalha todo o seu gênio para moldá-lo numa
linguagem muito sutil, mas nós podemos adivinhar que as motivações
inconscientes para tal estória não falta: irmão de um gêmeo morto, ele possui
contos com duplas interpretações [Henrique - o topetudo, O pequeno Polegar,
Cinderela, As fadas] e podemos até mesmo perguntar se, atrás do nome -
masculino – de Chapeuzinho vermelho* não é possível escutar foneticamente um
pequeno Charles Perrault.
Sendo assim, o texto do conto redigido por Perrault vem do saber popular
onde é possível aos folcloristas do século XIX encontrar diferentes versões,
umas vinte, testemunhando o que poderia ser o essencial do material recolhido e
modificado por Perrault. Nessas leituras, compreendemos rapidamente que o sábio
acadêmico criou algumas modificações: em alguns relatos o lobo mata a avó, porem
ele se contenta em sangrá-la e fatiá-la para que quando a menininha chegue, ele
ofereça uma espécie de refeição canibal; e enfim, graça a um subterfúgio, a heroína
escapa e o lobo se afoga.
Atrás do horror, é possível colocar em evidencia uma grande sabedoria: no
contexto da sociedade rural tradicional, esse conto tratava simbolicamente da transmissão
dos saberes e poderes entre gerações de mulheres, da distribuição dos papéis
entre homens e mulheres e da passagem da infância à idade adulta.
Revisto e corrigido por Perrault sobre a forma de um “conto de advertência”,
ele submeteu uma feliz modificação através dos contos de Grimm onde, se
inspirando no Lobo e Sete Cabritinhos, a tradição oral dá forma à versão
escrita, voltando-se para os finais felizes.
(...) Pode-se pensar, alías, que essa estranha historia tira sua fonte de
um episódio da mitologia indo-européia que coloca em evidência dois personagens
conhecidos pelos gauleses sobre o nome de Sucellos e Nantosuelta. O primeiro, às
vezes representado vestido com uma pele de lobo sobre o ombro, ou acompanhado
de um lobo, acaba, depois de várias tentativas malsucedidas, por se fantasiar
de mulher velha para apreender a comida divina transportada pela segunda, que é
uma jovem deusa. (...)
Fonte: Quand on parle du loup en Bretagne - François de Beaulieu
* No original em francês - Le Petit Chaperon Rouge - nome masculino.
Fato bem
discutido na literatura, esse final por vezes é atribuído aos Grimm. Alguns
estudiosos afirmam que no final do conto original de Perrault, escrito para
Luís XIV, a heroína é devorada pelo lobo, assim como a sua avó. Sendo um conto
voltado à moralidade das jovens mulheres – a perda da virgindade [comida]
poderia ser punida com sangue [assassinato] se essas se deixassem seduzir pelo
lobo [homem].
Tratando-se
de uma tradição rural também alertava às jovens bonitas - tendo em vista que
chapeuzinho é retratada não como uma criança, mas como uma moça jovem, atraente
e bem educada – sobre a possibilidade de estupros, caso saíssem sozinhas para
florestas ou lugares afastados.
Uma das
muitas funções de Sucellos era oferecer aos “mortos” recém-chegados no submundo
a bebida da imortalidade, com a qual a alma poderia viver livremente até
retornar a um novo corpo. Caso a bebida não fosse oferecida, sucellos
aniquilaria essa alma, apagando toda a esperança de que ela um dia retornasse à
Bitos. No caso de chapeuzinho, em uma das versões lhe é oferecido um jantar feito
com a sua avó já morta. Podemos supor então que:
1. Ela como
recém-chegada à Antumnos deveria beber – ou como relatada na estória, comer –
os restos de sua avó para viver livremente no submundo.
2. Possa
ser que ela tenha encontrado somente a entrada, tendo em vista que diversos heróis
da mitologia celta conseguem entrar no submundo sem estarem mortos, uma vez que
é descrito que ela “consegue escapar através de um subterfúgio”.
3. O submundo
dos gauleses, muitas vezes é visto como oceanos, rios ou regiões alagadas. O
fato do lobo se afogar pode ser uma alusão ao fato de que Sucellos, como deus
do submundo, após aventurar-se pela terra, poderia voltar ao Antumnos se “afogando”
ou afundando no oceano.

0 comentários:
Postar um comentário