quinta-feira, 31 de maio de 2012

Katell Gollet


Na Bretanha ainda pouco cristã, existia uma moça de beleza esplêndida, mas cujo coração não amava que os prazeres da carne. Chamava-se Katell Gollet, ou em nome cristão, Catarina a Perdida. A bela jovem tinha 16 anos e morava no castelo de seu tio, em Roche-Maurice, perto de Landerneau. O conde, querendo se livrar dessa pesada tutela, esperava encontrar um marido que se responsabilizaria em tentar dar razão ao espírito perverso de Katell. Entretanto, a bela preferia se entregar aos prazeres da dança e das festas ao invés de pensar em casamentos.

Para despistar seu tio, ela utiliza um subterfúgio: declara-lhe que se casará com o cavalheiro que for capaz de fazê-la dançar 12 horas seguidas. Numerosos foram os jovens do condado a tentar sua sorte. Mais ela cansava-os tanto que muitos, mortos de fatiga, não conseguiam sobreviver.

O sacrifício era tamanho que seu tio a aprisiona na mais alta torre do castelo. No entanto Katell escapa e conhece o jovem Minec, tão bom dançarino e que ao se apaixonar pela dama, a faz pedir perdão a La Martyre*. No entanto os dois continuam a dançar até o raiar do dia. 

Na noite seguinte, ao partiparem de uma festa, o jovem homem não mais resiste à incansável Katell, que acorrentada no fogo da dança e do vinho, invoca as poderosas forças do submundo implorando por novos músicos e dançarinos. É assim que um diabrete a acorrenta numa gigue* infernal e a faz atravessar a fronteira para o reino dos amaldiçoados.

·    *  Famosa igreja da Bretanha, La Martyre ou Ar Merzher, foi palco de inúmeras lendas e fatos históricos que deram origem ao nome da cidade e por sua vez, da igreja.

** Gigue é uma dança tradicional francesa, na qual os passos são extremamente rápidos e em ritmo binário. É irmã da Jigg irlandesa e da escocesa.

 

Variantes da lenda:

Numa primeira variante Katell Gollet era de uma beleza rara que fazia com que todos os rapazes se apaixonassem. Porém de má reputação, conhecida por não conseguir amar ninguém, uma noite se apaixona por Minec, um jovem dançarino de 17 anos com imensos olhos azuis. Apaixonados, ela o leva para o perdão* de Notre-Dame de Braspast. Porém antes de se casarem, ela resolve testar Minec numa dança que durará a noite toda. Mesmo casada será sempre Katell que começará uma boa festa.

Essa variante da lenda inspirou o filme Non ma fille, tu n’iras pas dancer de Christophe Honoré.

* o "perdão" citado nas lendas acima, na minha opinião, é uma variante antiga para o casamento pré-cristão, os quais não precisavam de padre e era mais um acordo entre os noivos do que um "contrato" como se passou a ser o casamento depois.

 

Na segunda variante, uma versão totalmente cristianizada, Katell Gollet era uma formosa dama que só vivia para o prazer e a devassidão. De pouca virtude, ela colecionava múltiplos amantes. Um dia, um dentre eles, lhe pede para que ela roube uma hóstia sagrada. Desejando lhe agradar, Katell satisfaz seu pedido. Infelizmente esse jovem era satã em pessoa e Katell foi condenada aos tormentos eternos do inferno.

Igreja de Saint-Pierre

A referência para a figura de Katell pode ser encontrada no “Calvário de Guimiliau” ou "Plougastel-Daoulas na boca do inferno", um conjunto de 180 estátuas, edificadas na Igreja de Saint-Pierre.

 

Katell Gollet e o inferno
Calvário de Guimiliau

 

quarta-feira, 30 de maio de 2012

A Fada da Ilha de Loc'h


Antigamente, no país de Léon, viviam Houarn e sua noiva Bellah. Ambos se amavam ternamente mais não podiam casar-se pela falta de dinheiro que impossibilitava a compra de uma vaca e um leitão. Desesperado, Houarn um dia, resolve tentar a fortuna em outras terras e viaja com duas relíquias ofertadas pela noiva: o sino de Koledok que tocará em caso de perigo e a faca de Coretin que destrói todos os malefícios. Com Bellah resta o bastão mágico de Vouga para que ela possa reencontrar Houarn em caso de necessidade.

Chegando à Pont-Aven, o pobre viajante escuta falar sobre o reino de Groac’h na Ilha de Loc’h, mais rico que todos os reinos unidos da terra, pois uma corrente diabólica lhe trazia todos os tesouros dos navios naufragados. Muitos audaciosos tentavam partir em sua conquista, mas nunca conseguiam voltar. Apesar de todos os conselhos, Houarn, resoluto de conquistar essa riqueza, se conduz para a Ilha de Loc’h.

Ilha de Loc'h - Arquipélago de Glenan/Bretanha-FR

Chegando a borda da lagoa, que ocupa o centro da ilha, ele vê um barco em forma de cisne e ao subir, o barquinho ganha vida e arrasta o imprudente para o fundo do mar. Sem saber como, Houarn se encontra no maravilhoso palácio de Groac’h; a fada lhe recebe com prontidão e lhe dar para beber cinco dúzias de copos de um excelente vinho. Essas libações fazem houarn se esquecer de bellah e seus juramentos, e ele aceita com entusiasmo a oferta de se tornar esposo da sereia.

Ia perder a sua alma, quando, graças à faca de Corentin, um peixe que ia ser decapitado e que acabara de ser pescado pela fada, o adverte que, apesar de sua forma, ele era um antigo noivo da fada, e que sorte parecida lhe esperaria caso ele morasse nesse palácio. Houarn quis fugir, mais Groac’h lhe capturando com uma rede mágica que ela portava sempre em seu cinto, o transforma em sapo.

Felizmente para o infiel, nesse instante o sino de Koledok soa até Lannilis e Bellah voa ao socorro de seu noivo; graças a seu bastão mágico ela alcança em poucos instantes a lagoa encantada. Ao ouvir os conselhos de uma antiga vitima de Groac’h, ela se veste de homem e aprende que, se ela conseguir pegar a rede maldita, a fada se tornará impotente.

A fantasia de Bellah engana a sereia e a jovem moça ao seduzi-la, obtém o favor de pescar, ela mesma, os peixes do viveiro. Mas assim que consegue a rede mágica, ela a joga sobre Gorac’h e a transforma em um gigantesco sapo. A faca de Corentin traz de volta à forma humana todos os antigos pretendentes da fada e Houarn e Bellah, possuindo os maravilhosos tesouros, voltam à Lannilis.

Traduzido do original em francês "Culture Bretonne" por Elantia Leto

terça-feira, 29 de maio de 2012

A Lenda do Ankou


Os celtas não temiam a morte, pois acreditavam que a alma continuava sua jornada em Antumnos. Com o aumento da cristianização na Europa, muitos deuses foram relegados a personagens históricos ou folclóricos, principalmente os do submundo que passaram a serem temidos e evitados. Assim surge na Bretanha, o medo do Ankou.

Pertencendo ao folclore tradicional bretão, o Ankou é uma reminiscência do politeísmo celta e mais precisamente do deus cuja finalidade era a perpetuação dos ciclos, das estações, do dia e da noite, do nascimento e da morte.  Por portar o Mell Benniget – malhete abençoado, ele se aproxima dos deuses Sucellos e Eochaid Ollathair/Dagda [Irlandeses], que tinham como atributo dar e retirar a vida. Outra referencia de que o Ankou é celta são suas referências no folclore galês – sobre o nome de Arghau, e Ancow na Cornualia. Com o passar dos tempos suas funções iniciais foram reduzidas apenas para o “auxiliar da morte”.

Senhor do além, o Ankou é onipotente. Descrito como um esqueleto, às vezes envolto numa mortalha, segurando uma foice ao contrário – suas representações antigas o mostram armado com uma flecha, lança ou martelo.  Ankou aparece à noite, em pé numa charrete cujos eixos rangem. Esse fúnebre comboio é a “karrig na Ankou ou Karriguel na Ankou”, literalmente charrete ou carrinho de mão de Ankou. Muitos bretões do litoral costumam atribuir à descrição do ankou, um pirata esqueleto que navega pela costa com seu “Bag Nez”, um navio noturno. 

Escutar os rangimentos das rodas ou cruzar no caminho com uma sinistra carruagem são sinais anunciadores da morte de um parente. O cheiro de vela, o canto de um galo à noite, barulhos de sinos, são igualmente interpretados como anunciadores da morte. O medo do Ankou criou algumas lendas e curiosidades na Bretanha, tais quais:

- O ankou se acorda todas as noites de dezembro e em especial na véspera do natal, na qual os bretões costumam deixar a lareira acesa e alguns crepes na mesa, pois assim o Ankou trocaria a alma deles pelo calor e comida.

- Algumas igrejas no interior ainda possuem crânios em seus oratórios para que os paroquianos possam rezar em sua intenção.

- Na “noite das maravilhas”, entre 21 e 25 de dezembro, o Ankou costuma passar sua capa na cabeça das pessoas que morrerão ainda esse ano.

- Em sua versão “humana” o Ankou é visto como um homem alto e magro, com longos cabelos brancos; em outras, seu crânio gira sem parar, assim ele pode ver tudo que se passa na região que ele terá de percorrer.

- Ankou não é considerado como a própria morte, mas sim como um auxiliar, o “ceifeiro” que leva às almas ao outro mundo, sendo considerado um ente psicopompo. Sua foice não atinge quem está mais próximo, ela atinge quem ele quiser jogando-a pelo ar.

- Entre os camponeses acredita-se que o último morto do ano tornar-se-á o Ankou do ano seguinte. Quando há muitas mortes em dezembro, costuma-se dizer em voz alta “war ma fé, herman zo eun Anko drouk” – em francês Sur ma foi, celui-ci est un Ankou méchant [Por minha fé, este é um Ankou malvado].

La Martyre

- A etimologia da palavra Ankou vem do bretão Anken – tristeza ou de Ankoun – esquecido.

- O ankou possui referência nas igrejas bretãs de Brasparts e La Roche-Maurice: “Eu mato todos vocês” e “Lembra-te homem que tu és poeira” e ainda, escrito em bretão antigo, “a morte, o julgamento, o inferno gelado: quando o homem pensa, ele deve temer” – La Martyre.

 

Fontes: Culture Bretonne/Bretagne.com

O Combate das Árvores


Os 25.000 homens do cônsul Postumius penetram com apreensão na sombria floresta de Litena, no território dos Boiens, uma tribo da Gália Cisalpina, no norte da Itália. Os romanos temem os lugares arborizados onde suas legiões não podem evoluir livremente e onde, sempre a mercê de uma emboscada, eles são particularmente vulneráveis. Portanto, nessa região acidentada, não existe outro caminho que não seja esse desfile estreito que serpenteia entre as encostas cobertas de escuros pinheiros.

Os soldados de Postumius têm razão de desconfiarem. Os gauleses lhes prepararam uma armadilha à sua maneira. De cada lado do caminho, sobre uma boa largura, eles cortaram a base dos troncos das arvores de maneira que elas fiquem ainda de pé, mais que o menor choque possam lhes fazer cair. Quando a maioria da tropa romana está bem posicionada, os Boiens escondidos nas alturas, empurram os pinheiros que estão próximos a eles. Esses conduzem por sua vez, as arvores que estavam embaixo que, em seu turno, levam as mais baixas e assim por diante. 

Por esse hábil processo, seções inteiras de florestas se abatem sobre o exército romano num horrível acidente. Na impossibilidade de fuga, a maioria dos romanos são esmagados ou feridos. Surgindo de todos os lados com poderosos gritos inumanos, os gauleses correm furiosamente para os sobreviventes. Para bem mostrar seu desprezo pela morte, muitos não possuem nenhuma vestimenta; eles tem unicamente torques e pulseiras de ouro.

Somente um escudo multicor protege seus corpos revestidos de pinturas coloridas. Esse espetáculo impressionante aterroriza os romanos ainda vivos, que se deixam massacrar sem mesmo tentar se defenderem. O único é o chefe Postumios, que tenta corajosamente lutar antes de sucumbir em seu turno. Os Boiens levam sua cabeça como triunfo para sua fortaleza.

Seu crânio, banhado em ouro, se tornara um vaso à libações utilizado em cerimônias religiosas. Quanto ao saque, os gauleses, antes do combate, haviam feito o voto solene de os oferecer à Teutatès. Eles transportam então todos os objetos recuperados dos inimigos, em particular as armas e as joias, para um local isolado. Lá, eles os empilham num pequeno monte. Esse depósito sagrado não será nunca roubado. Infeliz daquele que ousasse tocar no tesouro dos deuses!

A floresta, uma vez mais, salvara os gauleses. E em varias ocasiões, ela lhe fornirá um refugio protegido, notadamente das expedições de Cesar, quer seja a imensa floresta da Europa central cuja travessia necessita de mais de sessenta dias de marcha ou aquela dos Trévires*, perto de Moselle*, que poderia abrigar toda uma população. Escondidos nesse universo impenetrável, os gauleses podem sobreviver graças aos frutos e às caças que eles encontram.



*povo celta que viveu na Gália do leste, atual Bélgica.

** Rio francês, afluente do Rhin. Atualmente é o nome de um estado. 

 

Les Legendes du Monde - traduzido do original em francês por Elantia Leto

O Visco Sagrado


Hoje é o sexto dia após a lua nova, época onde ela desenha sobre o céu uma bela foice dourada, um croissant elegantemente delgado. Desde a véspera, uma leve camada de neve varre o solo e do céu uniformemente cinza, caem sempre alguns flocos. Para se proteger do fio, os homens serram cuidadosamente seus braies aos tornozelos e enterram a cabeça no capuz de seus mantos. As mulheres se enrolam numa grossa capa de lã em cores vivas.

Apesar do mau tempo, os Arvenes da região vieram ao encontro fixado pelo druida Teutomatos. Desde os nobres, cercados de seus clientes, até os mais humildes camponeses com suas esposas, todos responderam seu chamado com prontidão.

A procissão se agita e sai da cidade. Primeiro entre os homens, reconhecemos facilmente o druida com sua vestimenta branca. Somente ele sabe o caminho a seguir, ele que se aproxima dos deuses, e cada um lhe segue com confiança sem questiona-lo. De tempos em tempos, ele recita algumas litanias mais suas palavras logo se perdem no ar gelado, e um doce silêncio recai sobre a procissão entorpecida. Logo atrás dele, dois jovens bois brancos, os quais acabam de receber o jugo pela primeira vez, andam num passo pesado, com ar resignado.

Faz um momento que o caminho se tornou mais íngreme; ele sobe através do topo de um planalto recoberto de uma densa floresta. Chegando a borda da floresta, Teutomatos para por um instante para que o cortejo se reagrupe, depois ele some nesse mundo sem horizonte, fechado de todos os lados por troncos de incontáveis arvores. De repente, a brisa se levanta e os galhos se entrechocam. Poderíamos dizer que a floresta se pôs a falar, a responder às palavras do druida. Ninguém, entre todos aqueles que o seguem, duvida que Teotomatos conheça a linguagem das arvores.

A medida que os gauleses avançam sobre a floresta, o caminho se apaga; o ultimo traço que os ligavam a seu universo familiar, dos campos e das aldeias, desaparecem. Quando eles encontram uma clareira, o homem de branco faz um gesto; logo todo mundo se imobiliza.

« Dervo ! » grita ele apontando o dedo para um velho carvalho rouvre*de ramos atormentados.

« Dervo ! » repete religiosamente a multidão.

Lá encima, perto do topo, uma gorda moita de visco desenha uma bola verde. Uma vez ainda, o druida conduziu seu povo para a arvore sagrada, aquela que os deuses escolheram para portar a planta venerada, essa curiosa planta de bagas brancas que não cresce pela terra e que floresce quando toda a vegetação adormece.

Para os gauleses, o visco, que não cresce no solo, pertence a um outro universo, aquele dos deuses e dos mortos. Vivo sobre o galho morto que o segura, ele vem lembrar que a morte pode gerar a vida, esperança de um "além" cujo druidas não cessam de recordar sua existência. 

A multidão formou um circulo ao redor da arvore. Teutomatos, após alguns esforços, consegue subir até o primeiro galho. De lá, ele ganha facilmente o topo do carvalho. Ele retira então sua foice de  fina lâmina de ouro, metal puro por excelência e cujo brilho imita aquele do sol.

Ele entoa com sua voz grave algumas preces e corta o visco que recolhe cuidadosamente num lençol imaculado. Durante esse tempo, os sacrificadores imolam os dois bois. Os flocos caem mais e mais fortes; a noite invade a vegetação. A cerimônia se conclui. Voltamos para a vila com uma certa pressa, felizes por trazer o visco sagrado.

 

·   * Um tipo de carvalho que cresce em solo seco e cujas bolotas quase não possuem cauda.

 

      Les Legendes du Monde - traduzido do original em francês por Elantia Leto.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

O Malhete de Sucellos


Deitado sobre sua biga transformada em cama, Bogiorix descansa, o rosto tão pálido quanto o mármore, mas com traços serenos. Poderíamos dizer que ele dorme um calmo sono. Não vemos o menor traço do golpe de lança fatal que lhe atravessou o tórax : seu escudo de madeira, decorado com motivos geométricos, esconde totalmente seu ferimento. Do lado direito, jaz sua espada preferida, colocada numa bainha de bronze ornada de arabescos e reforçada de corais. Ele era tão orgulhoso !

A calma da casa real somente é perturbada por sufocadas lágrimas. Num local escuro, Diuogna, a filha mais jovem do defunto, chora tristemente. Lágrimas rolam sobre suas bochechas de criança. Todo mundo tentou consola-la, lhe repetiam que seu pai foi morto em batalha, mas ninguém podia conter sua tristeza. Quando seis fortes guerreiros levantam a cama mortuária, Diuogna aperta seus pequenos dedos para não gritar.

O cortejo fúnebre atravessou solenemente a vila para conduzir Bogiorix até sua morada eterna. Antes de descerem ao fundo da vala, os druidas fazem o sacrifício ritual de suas armas para que Bogiorix entre no outro mundo levando a paz. O ferreiro tira a espada do morto de sua bainha e a mergulha na fogueira. Quando o ferro torna-se bem vermelho, ele dobra varias vezes a lâmina sobre ele mesma. Depois, tirando um pesado machado, ele faz violentos golpes sobre a placa de metal que reforçava o centro do escudo do chefe. Um druida começa a falar. Ele explica que um gaulês não deve temer a morte; que ela somente marca a metade de uma longa vida.

Quando o corpo desce à terra, o irmão mais velho de Diuogna joga na vala uma estatua de cavalo. É esse animal, fiel companheiro dos guerreiros, que tem a tarefa de conduzir as almas para o outro mundo, além, muito além, muito longe, além do ocidente, em alguma ilha desse oceano infinito onde o sol desaparece a cada noite.

Enquanto a alma de Bogiorix cavalga através do espaço em direção a esse reino misterioso, começa-se a preencher sua tumba. O velho Trítios, um amigo do rei, segura a mão de Diuogna. Ele lhe fala sobre seu pai, de sua generosidade : quem teria lhe emprestado uma grande soma de moedas alguns dias antes?

Bogiorix tinha acordado que Trítios lhe pagasse somente no outro mundo. Esse curioso acordo, frequente entre os gauleses, prova que eles possuíam a certeza de que reviveriam após a morte. Diuogna, ela também, esta convencida, mas isso não é suficiente para aliviar a alma de uma menininha que acaba de perder seu adorado pai.

Desde sua chegada ao país dos mortos, Bogiorix é acolhido por Sucellos. O deus, vestido à moda gaulesa, porta uma curta túnica, um capuz e braies*. Ele se apóia num longo bastão. Olhando melhor, Bogiorix percebe que esse bastão termina num malhete** de duas cabeças : os golpes deferidos com a primeira cabeça são mortais; aqueles deferidos com a segunda cabeça, ao contrario, tem o poder de ressuscitar. Em efeito, Sucellos, aquele que bate forte, é as vezes o deus da morte e da ressurreição.

Sucellos vai até o barril situado atrás dele para encher, com a bebida da imortalidade, um pequeno vaso de cerâmica que entrega à Bogiorix. A partir de agora, o chefe gaulês começa, perto dos deuses, uma nova existência, uma segunda vida.

Sobre a terra da Gália, no pais dos vivos, um menhir, alto e largo, se levanta sobre sua tumba. Bogiorix, o "combatente supremo", entra para as lendas. Seus feitos, cantados pelos bardos, se acrescentam àqueles de seus gloriosos ancestrais. Sobre sua sepultura, lugar sagrado, os profetas, certas noites, virão recolher às previsões do futuro.

* calças gaulesas, largas na perna e atadas nos tornozelos.
** uma espécie de martelo comum em julgamentos

Les Legendes du Monde - traduzido do original em francês por Elantia Leto

O Ouro maldito de Delfos II


De manhã, aproveitando a densa neblina, ele escala a montanha. Quando os gregos percebem o inimigo, é muito tarde. Os gauleses os surpreendem e fazem uma carnificina. O caminho para Delfos está enfim liberado !

Contrariamente às previsões de Brennus, a cidade resite bem aos repetidos ataques de suas tropas. A luta, indecisa, se prolonga com dificuldade.  E quando finalmente, os gauleses iam penetrar no templo sagrado, começa um terrível tumulto. A terra treme, fendas se abrem engolindo os homens; relâmpagos caem em todos os lados. Uma tempestade de neve cega os combatentes assustados enquanto que uma chuva de pedras caem em grande número: ninguém viola impunemente o santuário de Apolo !

Nessa desordem de fim de mundo, os gauleses tem a impressão de que verdadeiramente o céu cai em suas cabeças ! Eles abandonam o lugar para fugirem o mais rápido que podem da ira dos deuses. Na noite seguinte, enquanto os gauleses não estão ainda refeitos de suas emoções, um novo pânico, incompreensível, toma os soldados sobreviventes, um terror incontrolável que provoca tamanha confusão que os gauleses se massacram entre eles. No raiar do dia, milhares de cadáveres jazem no solo. Brennus, ele mesmo possui três feridas.

Fiel à tradição de seus antepassados, o chefe vencido se suicidará ao chegar no campo de Herácles. Seu amigo Kichorios deve então dirigir a retirada dos gauleses, sobre a perseguição continua dos gregos. Alguns dizem que nenhum homem voltará vivo dessa desastrosa expedição. Outros afirmam que os sobreviventes irão para a Ásia onde eles se instalarão numa região que empresta seu nome, a Galácia*. Segundo uma terceira versão, uma parte dos gauleses, os Tectósages* conseguirão levar para casa, em Tolosa*, o tesouro de Delfos : quinze mil moedas de ouro.

Mais tarde, seguindo a lenda, o general romano Servilius Caepion, depois de destruir Tolosa, se apropria desse tesouro sagrado, que é transportado para a capital do império. Durante esse trajeto, ele se fará atacar por seus cúmplices em sua própria carruagem que carregava esse inestimável tesouro.  Esta ação sacrílega não trará sorte a seus autores. Todos aqueles que tinham participado dessa jornada morreram lamentavelmente. E ninguém soube o que aconteceu com o « ouro maldito » de Delfos !

*Étolie é uma região grega que atualmente está unida à acarnanie com o nome de Étolie-acarnanie.
** Galácia era uma província romana que ocupava a parte central do que agora é conhecido como a Ásia Menor. Seus habitantes são conhecidos como gálatas e o adjetivo relacionado à Galácia é galático
*** Os tectósages são um dos três povos celtas que juntamente com os Tolistoboges e os Trocmes formaram em anatolie [atual Turquia] a comunidade dos galates.
**** Tolosa é o nome ocitano para a atual cidade de Toulouse, sudeste da França.
***** Nos dados históricos, em 279 av JC, começou-se uma grande expedição comandada por Brennos e Akichorios. Uma parte do exército comandado por Brennos desce até Thermopyles e chega à Delfos com um exercito de 65 mil homens. A outra parte, comandada por Léonorios e Lutorios atravessa Thrace. Esse exercito conquista Hellespont e chega em Anatolie convidados pelo rei Nicomedes I de Bithynie, a fim de combater Antiochos I, rei dos Selêucidas. Vencidos por este ultimo, os celtas se instalam nas altas montanhas anatolianas, tornando-se então a tribo da Galácia.


Les Légendes du Monde - traduzido do original em francês por Elantia Leto

O Ouro maldito de Delfos


A Macedônia, antiga pátria de Alexandre o grande, acaba de ser conquistada pelos celtas. No campo gaulês, os guerreiros vencedores celebram sua vitória com exaltação. O vinho desata as línguas e aquece os espíritos. O chefe Brennus, se retira sozinho, a distância. Pensativo, ele olha o horizonte : «porque ficar aqui, pensa ele. Do outro lado das montanhas, para o sul, se acha a Grécia e depois, mais longe ainda, além do estreito, a Ásia infinita, aquela que foi o teatro dos benefícios de Alexandre »

O exemplo do ilustre conquistador macedônio assombra desde sempre os ambiciosos sonhos gauleses. Para seguir bem seus vastos projetos, Brennus deve convencer seus homens; a tarefa é árdua. É necessário usar toda a sua força de persuasão, prometer para aqueles que o seguir, a fortuna, lhes descrevendo as riquezas das cidades gregas. Ele irá até mesmo utilizar um truque: reunindo os prisioneiros gregos baixinhos, ele os fazem desfilar diante de sua tropa, lhes fazendo acreditar que eles não terão nenhum mal em lutar com um monte de anões!

Cento e cinquenta mil homens na infantaria e dois mil cavaleiros, finalmente um gigantesco exército que invade a Grécia sobre o comando de Brennus. No entanto, um primeiro obstáculo impede o impetuoso general : as pontes do rio Sperchios foram destruídas pelos gregos. A única doca transitável não faz menos que um metro e sessenta de profundidade. Somente os cavaleiros podem passar sem acidente. Alguns infantes atravessam a nado, mas a maioria utiliza seus escudos de madeira numa espécie de barquinho improvisado.

Um pouco mais tarde, a queda da fortaleza de Heracle permite aos gauleses de dispor de uma base certa a partir da qual eles poderão lançar as operações, que no espírito de Brennus, devem conduzir à conquista de Delfos. Esta capital religiosa do mundo grego guarda inestimáveis tesouros dentro do templo de Apolo. 

Pelo instante, Brennus se acha bloqueado aos pés do monte Oeta. As raras passagens estão tomadas por gregos que vieram de diferentes cidades visando parar o invasor. Entre os gauleses, a duvida se instala, e o descontentamento começa a ganhar esses homens poucos disciplinados. Para o general, o tempo urge; é necessário achar uma solução antes que suas tropas o abandonem. Uma idéia surge então no seu espírito: dois de seus tenentes partirão com uma parte de seu exército e farão um desvio para Etolie*

Quando esses sabem que sua região se pôs a ferro e sangue, os soldados étoliens que, com os outros gregos, guardavam o monte Oeta, se apressam em retornar à sua pátria devastada . Era o que desejava Brennus ! Então, acompanhado de quarenta mil homens, ele tenta o tudo ou nada.

[continua]

Os Gansos Sagrados



Desde um momento que Brennus não tira os olhos da linha dentada de Apennin que barra o horizonte. Atrás dele, trezentos mil homens de seu exército lhe observam sem falar nada. Ele não prometeu a glória aos que aceitassem segui-lo para o outro lado dessas montanhas ? O solisticio de verão se aproxima e a lua vai logo atingir sua amplitude máxima. Os druidas julgam que o momento é enfim favorável. O exército pode se tranquilizar. Os romanos esperam nas bordas de Allia, um modesto afluente do Tibre, bem decididos de pararem essas « hordas bárbaras », mas, desde que eles escutam os clamores de seus adversários crescerem, eles fogem quase sem combater : mais uma vez o poder « mágico » da palavra se fez.

Só resta a Brennus caminhar para Roma. E qual não é sua surpresa quando ele descobre que os portões da cidade estão abertos. No interior nada se mexe. Temendo uma armadilha, o gaulês hesita antes de penetrar na cidade e é com a maior das prudências que ele se aventura pelas ruas misteriosamente desertas. Sua surpresa é ainda maior quando ele descobre, sentado sobre curules*, veneráveis anciões totalmente imóveis. 

Impressionados, o exercito os olham com certo respeito, não sabendo se são homens de carne e osso ou estátuas. Um soldado, mais audacioso que os outros, puxa ligeiramente a longa barba branca de um desses estranhos espectros. Imediatamente, o velho bate um violento golpe com seu bastão de marfim na cabeça do insolente. Esse gesto do ancião desencadeia a raiva dos gauleses que massacram alguns romanos que se achavam no local e pilham casas e templos. No entanto, uma parte da vila escapa de Brennus. A colina do capitólio, poderosamente fortificada, serve de trincheira a uma punhada de defensores decididos a lutarem até o fim. 

O tempo passa. Uma noite, os gauleses, aproveitando a escuridão, tentam escalar, no mais profundo silêncio, a subida íngreme da colina. Tudo se passa bem. Nem os sentinelas, nem os cães de guarda percebem o perigo. É então que os gansos sagrados de Juno, deusa protetora de Roma, começam a gritar e a bater as asas, correndo em todos os sensos, perturbados. O romano Manlius, o primeiro, dá o alerta. Com seu escudo, ele faz cair no vazio um gaulês que estava quase chegando ao baluarte. Com sua queda, ele leva aqueles que o seguia. 

O ataque ao capitólio fracassou...por conta dos gansos sagrados! No entanto, os sitiados sofrem cada vez mais de fome e devem renunciar e fazer um trato com os gauleses. O tribuna Sulpicius vai ao encontro de Brennus que exige um resgate; os romanos têm que aceitar as condições dos vencedores.

Quando juntaram o enorme tesouro, os romanos levam ao chefe gaulês que faz proceder a uma longa e minuciosa pesagem. Sulpicius, percebendo que os pesos utilizados eram falsos, se queixa à Brennus. Esse ultimo, que sabia bem, lança sua espada sobre a balança gritando com arrogância: “Infelicidade aos vencidos”! 

Os romanos guardarão sempre uma terrível lembrança dessas hordas gaulesas vindas para pilhar suas cidades.

·   *Um tipo de assento feito de marfim cujos magistrados romanos costumavam se sentar.

Les Légendes du Monde - traduzido do original em francês por Elantia Leto


Ésus, o visitante noturno


Na vila, todos o chamam de Rutenos, o vermelho, provavelmente por causa de seu rosto carmesim, de sua pele queimada pelo fogo de sua oficina, de seus fartos bigodes ruivos e de seus cabelos desgrenhados da mesma cor.

Sempre alegre, de olhos risonhos afundados nas orbitas, protegidos do fogo das chamas por sobrancelhas cabeludas, esse simpático gigante de força legendária não é de forma alguma um homem como os outros e possui certo prestigio. 

Retumbando desde a aurora, o som claro de seu martelo sobre a bigorna acorda cada manha, um bom número de habitantes da pequena aldeia. Sabemos pela tonalidade de notas que escapam de seu atelier, o sentido do vento e deduzimos qual tempo fará.

Graças a seu martelo mágico, Rutenos faz cantar o ferro. Sua oficina é como um santuário onde, com a cumplicidade do fogo, ele doma o metal. Sobre seus hábeis golpes surgem armas formidáveis utilizadas pelos guerreiros, espadas, lanças, dardos, mas também as pacíficas ferramentas do camponês ou o machado do lenhador.

Para os gauleses, Rutenos é um homem superior, um pouco inquietante, dotado de um poder sobrenatural. Os segredos da metalurgia foram transmitidos de seus longínquos ancestrais pelo deus ferreiro Ucuetis. Não se pode esquecer que é o domínio sobre o ferro que dão aos celtas sua superioridade sobre muitos povos, que só tinham à sua disposição, armas em bronze. 

Nessa noite, Rutenos demora mais que o de costume em seu atelier. Lá fora, a noite cai e o ferreiro se prepara para apagar as últimas brasas que crepitam ainda no seu forno. Bruscamente, golpes violentos batem na porta. Logo um homem penetra em seu atelier. Alto, sem camisa, com músculos poderosos, ele está apressado. O ferreiro imediatamente nota o machado de corte fraco que ele carrega na mão. Ele não tem nem mesmo tempo de perguntar ao visitante a razão de sua intrusão intempestiva. 

Esse último já falava: "você é Rutenos, o ferreiro, aquele que ostenta o titulo de ferreiro incomparável? Eu lhe trago meu machado para que tu refaças a lâmina". Intrigado, o ferreiro observa esse curioso cliente vindo numa hora tão tardia.

 - Anoiteceu e minha oficina está fechada. Volte amanhã na aurora, então eu me ocuparei de teu machado, responde com calma Rutenos. O que você cortou para que ela esteja em tal estado? O desconhecido, aumentando o tom, recomeça com uma voz autoritária:

- É nesta noite que eu quero meu martelo, entendestes Rutenos, esta noite! Ninguém faz Ésus esperar! E, ouvindo esse nome, Rutenos se sobressalta. Ésus ! O cruel Ésus ! O lenhador divino! O decifrador celeste! Aquele que os gauleses têm medo e pelo qual os druidas penduram as vitimas nas arvores!

O ferreiro não é um homem medroso, mas a presença do deus sobre seu teto não lhe agrada em nada e o incomoda. Rápido, ele acrescenta carvão de madeira no seu forno e aciona o fole. Um brilho avermelhado ilumina a peça, projetando nas paredes sombras dançantes. Rutenos coloca o machado de Ésus no meio do forno e continua a ativar o fogo. Com a ajuda de um atiçador, ele reagrupa sem parar as brasas sobre o fogo até que esse atinja a temperatura esperada.

Então com sua longa pinça, ele retira o machado e o coloca sobre a bigorna. Retirando seu mais pesado martelo, ele bate com golpes redobrados sobre a ferramenta do deus d’onde saem uma chuva de faíscas. O ferro se estende, se deforma, azulece pouco a pouco. Ele novamente faz o ferro esquentar até ficar branco. O trabalho noturno de Rutenos intriga os aldeões. Mas, como o temem, ninguém ousa perguntar nada.

Durante toda a noite, Rutelos martela o ferro do machado. O suor cai de sua pele, cola sobre o bigode...ele não para que nos primeiros raios da aurora. Ele apresenta então ao deus uma ferramenta perfeita, com lâmina regular, afiada, uma obra-prima. Ésus parece satisfeito. Retomando seu machado, ele desaparece rapidamente na neblina matinal, sem nem mesmo agradecer ao ferreiro. 

Rutenos, exausto, mas aliviado, pode enfim dormir. Como ele é um pouco falador, ele guardará segredo de sua desventura e ninguém nunca conhecerá a identidade de seu cliente noturno.

Les Légendes du Monde - traduzido do original em francês por Elantia Leto.

terça-feira, 22 de maio de 2012

O Tesouro de Cernunnos


Os caçadores estão imobilizados, petrificados. Diante deles, na clareira, um cervo de uma altura inabitual se mostra majestoso, portando sobre a cabeça uma imponente galhada.

“O Senhor da Floresta!”

Os gauleses reconheceram a tufa de pelos claros em forma de lua crescente que ele porta no meio da testa. É o velho solitário, aquele que, não aparece que a cada trinta anos, esse cervo inacessível do qual os antigos falam no fim dos banquetes, quando a cerveja solta às línguas e faz montar à memória, intermináveis historias de caça.

O que espera ele nessa pose solene? Seu faro tão agudo não lhe sinalizou a presença dos homens? O animal agita uma orelha, vira lentamente a cabeça. Seu olhar fixa os caçadores... e no entanto, sem se apressar, com toda dignidade de sua estatura, ele faz alguns passos antes de pegar seu impulso para saltar, com forca e agilidade, embaixo de um matagal.

Refeitos da surpresa, os gauleses se apressam em retornar à vila e anunciar seu extraordinário encontro.  Um longo balido os faz parar. O cervo não deve estar longe. Eles se precipitam em sua procura. Que orgulho se eles pudessem lhe capturar!  Que acolho triunfal se eles levassem o senhor das florestas!

Eles percebem novamente o cervo a pouca distancia deles, a cabeça levantada para pastar alguns ramos. Ele parece os esperar. Desde que eles se aproximam, ele retoma sua corrida com calma e seriedade. Uma vez, duas vezes, vinte vezes o cervo deixa os homens se aproximarem para depois continuar a escapar.

Os gauleses se aborrecem: com certeza o velho solitário zomba deles! Mas eles acabarão por terem a sua pele! E eis que ele se encontra nos pés de um penhasco. Os caçadores, habilmente, o cercam: eles não podem mais se conterem! Com todas as suas forcas, eles lançam os dardos. As armas se quebram sobre o rochedo. No ultimo minuto, o cervo desapareceu em uma fenda do penhasco escondido por um muro de hera.

Loucos de raiva, percebendo que mais uma vez foram enganados, os gauleses agarram suas espadas e penetram na fissura do penhasco. A escuridão torna-se total. Eles avançam tateando num caminho estreito. Eles erraram em insistir? Talvez. Não estão eles próximos de encontrar a casa de algum deus subterrâneo?

Pouco importa: sua ira é tão grande que eles não pensam em mais nada... no final, depois de arranharem a pele nas pedras rochosas, eles saem em uma vasta caverna. Um fraco luar esverdeado descia da abobada, numa parte danificada. Tão logo entraram nessa estranha caverna, os caçadores gritam e curvam-se para o chão. Diante deles, um curioso personagem espera sentado de pernas cruzadas. É um nobre velho vestido à moda gaulesa, um torc de ouro no pescoço, de magníficas galhadas enfeitadas com anéis brilhantes sobre a cabeça.

“Cernunnos! O Gamo-rei!"

O velho solitário, então era ele! O deus abre o saco cheio que possui entre os joelhos. Moedas de ouro escapam, rodam até os caçadores. Esses não sem mexem. Eles parecem petrificados de medo apesar do ar tranquilo de Cernunnos. Eles têm a impressão que seus membros endurecem, que seus corpos congelam.Suas pálpebras pesam. Incapazes de lutarem contra esse entorpecimento, eles caem no sono. 

Quando acordam, já fazia noite. Eles estão sozinhos na gruta. Eles não sabem quanto tempos eles ficaram adormecidos. Eles se perguntam se realmente viram o deus cervo ou se não foram vitimas de uma alucinação. Um dentre eles, que estava de pé, tropeça num obstáculo: o saco! Não, eles não sonharam. O generoso Cernunnos, deus da abundancia, desapareceu, mas tinha deixado para eles, um fabuloso tesouro.

Les Légendes du Monde - traduzido do original em frances por Elantia Leto

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Le Complainte de la Blanche Biche

http://www.youtube.com/watch?v=DHS5hfzstmI

Celles qui vont au bois c'est la mère et la fille,
La mère va chantant et la fille soupire.

" - Qu'a vous à soupirer ma blanche Marguerite,

- J'ai bien trop d'ire en moi et n'ose vous le dire.
Je suis fille le jour et la nuit blanche biche
La chasse est après moi des barons et des princes.
Et mon frère Renaud qui est encore le pire ;
Allez ma mère, allez, bien promptement lui dire
Qu'il arrête ses chiens jusqu'à demain midi.

- Où sont tes chiens Renaud, et la chasse gentille ?

- Ils sont dedans le bois, à courre blanche biche.
Arrête les Renaud, arrête je t'en prie !

Trois fois les a cornés, de son cornet de cuivre.
A la troisième fois, la blanche biche est prise.
Mandons le dépouilleur, qu'il dépouille la biche.

Celui qui la dépouille dit :
" Je ne sais que dire... " Elle a le cheveu blond et le sein d'une fille. "
A tiré son couteau, en quartiers il l'a mise
On en fait un dîner aux barons et aux princes.
- " Nous voici tous sied, hors ma sœur Marguerite.

- Vous n'avez qu'à manger, suis la première assise,
Ma tête est dans le plat et mon cœur aux chevilles.
Mon sang est répandu par toute la cuisine.
Et sur vos noirs charbons mes pauvres os s'y grillent.

" Celles qui vont au bois c'est la mère et la fille, La mère va chantant et la fille soupire. "
- Qu'a vous à soupirer ma blanche Marguerite,
- J'ai bien trop d'ire en moi et n'ose vous le dire. "

A Corça Branca


A corça branca é um animal fabuloso presente em numerosos contos e lendas antigas. Dependendo da época e do local das lendas, a história sofre variantes: em alguns lugares é descrita como um animal fantástico que surge do além para enganar os caçadores. Em outras, a corça pode se transformar numa linda mulher - em pleno dia ou durante a noite, seguidas de uma maldição. Uma variante também mostra a corça como baba de bebes ou então na espera do amor verdadeiro de um cavaleiro para que o feitiço seja quebrado.

Na mitologia celta a corça é um símbolo de fertilidade da natureza selvagem. Em geral os animais brancos são criaturas mágicas do outro mundo e são ligados às fadas, que por sua vez são vagas lembranças das deusas-mães da era matriarcal. Nessa época, o casamento e o reconhecimento da paternidade não existiam; o amor, a sexualidade e as mulheres eram livres – uma sociedade sem pai nem marido onde o tio materno educava os sobrinhos no lugar do « pai ».

Considerada como animal totêmico também representa a linhagem sagrada das mães e pode ser encontrada em lendas famosas como « o conto das crianças cisnes » de Jehan de La Haute-Selve, A corça e a Pantera, Isomberte, Angleburg e na trova O lamento de Margarida [La conplainte de Marguerite].

Nesta canção, Renaud – o irmão – mata a corça branca [animal totem de sua família materna]. Esta corça, símbolo da mulher selvagem e não submissa, que brinca livremente no interior da floresta noturna, é sua própria irmã Margarida, aquela que passaria sua linhagem [sobrinhos] e a qual deveria proteger.

Analisada, esta canção passou a representar o fim do matriarcado na época antiga, pois o homem – antes em papel secundário – mata seu próprio sangue e assume o poder, como também pode ser visto em outros mitos antigos com Horácio – que mata sua irmã Camille e Orestes – que mata sua mãe Clytemnestre.

Na nova ordem patriarcal, o pai ou irmão deve vigiar a virtude da mulher, nascendo assim o culto à virgindade [garantia de reconhecimento da paternidade], sobre o risco de assassinato [crimes de honra] para proteger a reputação da família [linhagem patriarcal].

Fonte: Matricien.org

Vélleda a druidesa gaulesa

Sempre se escutou falar que não existiam mulheres entre os druidas, que só os homens eram admitidos. No entanto, na história e arqueologia há muitas controvérsias quanto à possibilidade de que um dia as mulheres foram de fato Druidesas. Mas uma coisa é certa: as mulheres eram Vates. Chamadas de Banduaid, Banfhlaith ou Banfhilid, as mulheres eram guardiãs do fogo sagrado.

A classe dos Vates, na sociedade celta, se ocupava mais particularmente do culto aos deuses, da divinação e da medicina. No entanto nada que pudesse reprimir a influência das druidesas em outras classes sacerdotais. Algumas profetisas tinham tanta importância na tribo celta que muitas vezes eram as conselheiras preferidas do rei, função regularmente atribuída ao druida teólogo.

Na mitologia céltica podemos nomear diversas druidesas: Aoife, Birog, Bodmall, Fionn, Fidelma. Muitas vezes o papel de profetisa se estendia à iniciação guerreira e sexual dos heróis. O grande druida Gàine, que na verdade era uma mulher, confirma o grande poder que elas exerciam sobre o povo. 

Na história Gaulesa, temos uma importante profetisa que viveu na época do imperador romano Vespasiano (69-79 J.C.). Seu nome era Velléda – aquela que vê – da tribo dos Bructères [teutons], e dominava um vasto território, recebendo tamanha veneração a ponto de sua influencia se estender até a esfera política.

Filha do chefe Segenax, comandava exércitos e era juíza de grandes conflitos, sendo o mais famoso, a briga entre as tribos de Cologne e Tenctères – de forte influencia germânica. Considerada como uma deusa viva, diziam ser filha de Sucellos e Nantosuelta.

Profetisa de Civilis* durante a rebelião entre os Bataves** contra Vespasiano em 70 J.C foi capturada por Gaius Licinius Mucianos, mas pelo respeito que impunha, foi tratada com clemência e levada como prisioneira de Roma, por Gaius Rutilius Gallicus em 78 J.C, onde viveu até a sua morte alguns anos depois.

De acordo com Tacito, “era proibido a qualquer pessoa se aproximar de Velleda ou de lhe dirigir a palavra, como que para lembrar-lhes a veneração que lhe era dotada. Ela ficava numa alta torre, d’onde um membro de sua família era responsável de transmitir as questões e as respostas, como mediador dos homens com a adorada. Muitos a tem como divindade, e assim como ela, também existiram outras, como Aurinia sua antecedente”.

Fonte: Challamel Augustin - Vélleda, 1988.



* Gaius Julius Civilis ou Claudius Civilis era um chefe celta mas com nacionalidade romana, como indica seu nome. Fermentou uma rebelião de seu povo contra Roma, juntamente com seu irmão Paulus. 
** A tribo dos Bataves fazia fronteira entre a Gália romana e a Germânia, recebendo muita influencia dos mesmos. Seu território atual é a Holanda.

Os corvos juízes divinos


A quem deve pertencer o enxame de abelhas que se fixou sobre o velho olmo? Audagos, o oleiro, afirma que a árvore lhe pertence, mas Matucenos, o ferreiro, afirma que suas raízes se espalham abaixo de seu prado.

É bem difícil de saber onde passa exatamente os limites que separam os terrenos desse vasto vale comumente inundado. Uma única solução: procurar o druida... O sábio homem marcou uma audiência com o oleiro e o ferreiro na manha seguinte ao nascer do sol, sobre o carvalho centenário onde ele tem o habito de julgar.

Na hora marcada, Audagos e Matucenos estão lá, assim como inúmeros curiosos. O druida faz todo mundo recuar a uma boa distancia. Ele suspende sobre os galhos gigantescos da árvore a madeira da verdade. Em cada uma de suas extremidades, ele coloca um pedaço de bolo: o da direita, feito por Audagos e a sua esquerda aquele de Matucenos.

De uma gaiola ele libera dois corvos que têm a particularidade de possuir algumas plumas brancas, marca divina e incontestável aos olhos dos gauleses. O inicio de suas asas foram ligeiramente cortadas dificultando o voo livre, assim desde que eles alcançem certa altura, caem desequilibrados.

O tempo passa e em pé de frente ao carvalho, o druida espera impassível, qual uma estatua de mármore. As pessoas, mais e mais numerosas, impedem os pássaros de deixarem o circulo de sombra desenhado sobre o solo pelas densas folhagens.

Um dos corvos saltita sobre a madeira. O ferreiro e o oleiro olham-no com ansiedade. Será que ele percebeu os bolos? Sobre qual pedaço ele vai se dirigir? Finalmente, ele parece os desdenhar... depois, bruscamente, quando parecia que ele iria se afastar, alguns bateres de asas atrapalhados lhe colocam sobre o bolo de Matucenos, que ele espalha com poderosas bicadas: os deuses recusaram! O oleiro ficará com o enxame de abelhas.

Os celtas consideram os corvos, e os pássaros em geral, como companheiros dos deuses, capazes de se elevarem até o céu, eles são os mensageiros divinos.


Les légendes du Monde - traduzido do original em francês por Elantia Leto

A Cólera de Taranis - parte II


“Teutatès! O Teutatès!” eles imploram desesperadamente pelo protetor de sua tribo, aquele que invocamos contra todos os perigos: guerra, epidemia, fome. O bom Teutatès poderia aplacar a ira de Taranis, esse terrível mestre do céu celeste que os druidas não acalmam que pelo sacrifício de vitimas queimadas vivas?

Dagolitos e Éporédax acham que os rochedos que eles cercaram subitamente ganharam formas estranhas, aquelas de monstros ameaçadores, silhuetas inquietantes que parecem se preparar para uma maléfica dança.

Os dois guerreiros pensam nessas historias que lhe contavam antigamente os seus pais: aquela do pastor petrificado com seu rebanho; também aquela do gigante celta que combateu sozinho durante três dias e três noites um exército inteiro antes de morrer. Não poderíamos dizer que esses dois pontos perdidos além da bruma não seriam chifres de seu capacete?

No entanto Taranis, apesar de sua sinistra reputação, não é implacável. Ele quase esgota sua reserva de raios. Sua roda se afasta; a tempestade se torna mais surda. Aproveitando da calmaria, os gauleses correm até a floresta onde, escondidos sobre as arvores, eles se sentem em segurança.

A cólera do deus recai pouco a pouco. Ele esboça mesmo um leve sorriso de satisfação, feliz de poder, mais uma vez, mostrar sua força e dar uma lição a esses gauleses imprudentes. Não será tão breve que um homem tentara novamente tal aventura! O cume da montanha continuará um lugar inviolável e sagrado como são a maioria dos lugares altos da Gália.

A deusa Arduinna, cavalgando um javali selvagem, vigia a floresta de Ardennes, enquanto que a divindade Vosegus reina sobre a floresta de Vosges. Assim, todos os lugares onde a terra se aproxima do céu são considerados pelos gauleses um lugar de respeito e veneração. 

Les Legéndes du Monde - traduzido do original em francês por Elantia Leto

A Cólera de Taranis I


Desde várias horas, Dagolitos e Éporédax escalavam a montanha sagrada. Os dois guerreiros tinham passado as últimas arvores e avançavam agora ao meio de uma charneca de urzes. Eles param para repor o fôlego. O silencio do lugar os impressionam. Eles sentem, confusamente, nesta solidão uma misteriosa presença.

Instintivamente, para se tranquilizarem, eles serram a mão no punho das espadas. Se arrependem de terem aceito essa estúpida aposta lançada no fim de um banquete com muitas bebidas. Porque eles tinham que falar que estavam preparados para subirem até o cume da montanha sagrada?

Nesse momento, eles pensam terem subido sem maiores preocupações e compreendem o caráter insensato de suas decisões. Eles ficariam bastante assustados se eles pudessem ver lá encima, sobre eles, o grande Taranis que os observava incomodado. O senhor dos céus contrariado passa as mãos nervosamente em sua barba cacheada. Ele não aprecia em nada a audácia desses insolentes que tentam se aproximar dos deuses!

Os dois amigos, hesitam. Em baixo, o mundo parece tão pequeno, tão longe. Eles têm a impressão de estarem num outro universo. Não valeria mais voltar o caminho percorrido enquanto eles ainda tinham tempo? No entanto, o pico estava próximo. Seria uma pena renunciar tão perto da conquista!

Apesar de suas inquietudes, Dagolitos e Éporédax recomeçam a andar. Então, Taranis, vendo a teimosia dos dois homens, deixa brutalmente transparecer sua cólera. Tirando uma das espirais que ele porta no ombro, ele a joga ferozmente sobre a terra. Um relâmpago cegante rasga o céu. Depois o deus cresce com todas as suas forças uma roda solar da carne de suas costas: um rugido terrificante invade o espaço, um barulho ensurdecedor que vem de todo lugar ao mesmo tempo.  Não se invade impunemente o domínio dos deuses e em particular aquele do grande Taranis!

Perturbados, os gauleses se encostam um contra o outro. Eles se assustam a cada vez que o relâmpago se abate sobre a montanha. Como eles preferiam estar sobre o campo de batalha, em face de inimigos mortais. Eles jogam suas espadas como demostração de suas intenções pacíficas. Aliás de que serviriam elas contra os poderes divinos? Pela primeira vez em suas vidas, eles tiveram medo. Certamente em algum momento, o céu cairá sobre suas cabeças!

O Malabarista das palavras


Um fogo brilhante ilumina a praça da vila. Apesar da hora tardia, a maioria dos habitantes estão lá, sentados no chão, quase imóveis, escutando religiosamente Dordovir.
Apoiado no tronco de uma arvore, o bardo fala lentamente, com uma voz cavernosa que parece vir do fundo das eras.

 “Eis que vemos luas?” Dordovir faz um tempo de espera; ele contempla o céu estrelado, depois recomeça seu recito. “Em tempos antigos, Ambigat reinava sobre a tribo dos Bituriges*. Esses orgulhosos guerreiros que se achavam os “reis do mundo” viviam no meio da Gália, ao norte do país de Arverne. Depois do inverno, Ambigat aparece aos homens de seu povo.

“bravos guerreiros, lhes diz, nossos campos, cada ano nos dão fartas colheitas; sobre a terra se acha ferro em abundancia. Nosso país é abençoado pelos deuses. No entanto essas riquezas não são inesgotáveis. Um dia chegará onde nós nos acharemos em grande número. Não esperemos esse momento! Atrás do horizonte, espera o mundo infinito. Vocês já comeram esses figos saborosos, essas uvas suculentas? Esse néctar divino que nos deu o verão passado esses comerciantes, vindos d’ alem das montanhas que se desenham ao lado d’onde nasce o sol? Vocês não possuem vontade de conhecer os felizes campos onde se colhem tão deliciosos produtos? Os celtas não têm raízes nos pés. Desde o começo dos tempos, eles andam e sim, as vezes eles param. Portanto sua jornada nunca está terminada".

“mal o chefe tinha terminado seu discurso e seus sobrinhos queridos, Bellovèse e Sigovèse, avancam: tu falaste sabiamente Ambigat. Desde o amanhecer, partiremos. Que aqueles que desejam nos seguir se preparem. Os deuses vão nos mostrar o caminho!

Durante a madrugada, ninguem dormiu. Nos primeiros raios da aurora, dois grupos de gauleses deixaram o país dos Bituriges.

Bellovèse condusia seus homens para a Italia do norte, essa regiao que os romanos chamavam de Gália Cisalpina**. Sigovèse, quanto a ele, partia para a Europa central".

Dordovir parou de falar. Não se ouve que o crepitar do fogo que logo se apagará. Ao longe, uma coruja pia. Sem acrescentar uma palavra, o bardo se retira. As pessoas que o escutavam se levantam e um a um, retornam aos seus lares.

Assim, cada noite, na bela estação, Dordovir conta um episódio da longa epopéia dos celtas. Ele fala de suas incessantes mudanças, de suas guerras intermináveis. Ele relata também as maravilhosas aventuras de todos esses heróis que, por suas façanhas, alcançam os deuses!

Les Légendes du Monde - traduzido do original em francês por Elantia Leto

* A tribo Bituriges ocupava a antiga região da Gália Central, atualmente entre o Loire e Garonne. Sua capital era Avaricon.
** A Gália Cisalpina correspondia essencialmente às terras do norte da Italia abaixo dos Alpes. Atualmente fronteira com a Suiça [Helvetia].

sábado, 19 de maio de 2012

O Potro de Épona


"Um sol primaveril ilumina o vale; uma leve brisa balança as folhas dos choupos. Parada na borda de um riacho, uma égua branca se sacia enquanto seu jovem potro brinca ao seu redor. Sentada sobre suas costas, uma graciosa amazona veste um longo vestido plissado de mangas curtas.

Seus cabelos, dispostos em duas bandas separadas por um raio, tombam em coque sobre sua nuca. Algumas mechas, que escaparam durante a corrida, caem sobre sua testa. A bela amazona, se servindo d’água como um espelho, ajeita seu penteado... o potro, cansado de correr, vem mamar na mãe...

Sem barulho, para não afugentar a bela aparição, camponeses, que trabalhavam ali próximo, se aproximaram. Um sorriso ilumina seus rostos quando reconhecem Épona, a deusa égua. Ela parou em seus campos: a próxima colheita será então abundante! - pensam.

Um dentre eles, Nertovir, um gaulês reputado por seus truques, teve então uma ideia: capturemos o potro de Épona, disse ele àqueles que o cercam, e nos teremos todos os anos, celeiros bem cheios, rebanhos sadios e gordos. 

Correndo até a aldeia vizinha, ele avisa à todos os homens que consegue achar. Munidos de redes que lhes servem ordinariamente à captura de javalis, eles voltam ao campo onde estava a divina amazona.

Os camponeses se organizam em um grande circulo ao redor do campo e depois avançam muito lentamente, quase rastejando, para a égua. O cerco se fecha. Quando Épona percebe a armadilha, ela faz sua égua partir em galope. Os gauleses se precipitam gritando em torno do jovem potro que pastava ao longe. O pobre animal, assustado, queria fugir, mas as redes, jogadas de todas as direções, o impedem. O potro se enreda nas malhas de cânhamo; ele se debate e cai.

Os homens conseguem amarrar suas patas e imobilizado pelas cordas, o potro de Épona é levado até a estrebaria de Nertovir. Por mais segurança, se reforça a porta com solidas pranchas de madeira.

No meio da noite, Nertovir é acordado pelos latidos de seus cachorros. Ele se levanta apressado e sai de sua casa. Lá fora, ele encontra outros camponeses, alertados eles também, pelos barulhos suspeitos. Alguns acreditam ter visto, deslizando entre as casas, a sombra de um cavalo branco e sua amazona. Eles imediatamente pensam em Épona e se dirigem à estribaria de Nertovir, no entanto a porta continua bem fechada e as madeiras não foram mexidas. Um pouco tranquilizados, cada um retorna para dormir.

Quando pela manha, Nertovir vai alimentar o potro, qual não é a sua estupefação de achar a estribaria vazia! Um grande buraco perfurado na parede dos fundos permitiu ao animal reencontrar a liberdade. Nenhuma duvida então de que a misteriosa amazona, que durante a noite rondava a aldeia, era Épona. Nertovir se arrepende de sua louca empreitada e agora teme a vingança da deusa, de cujo potro quis se apropriar."

Les Légendes du Monde - traduzido do original em francês por Elantia Leto


Nessa fábula podemos perceber os aspectos da abundâcia e da maternidade atribuídos à deusa gaulesa Épona. Como também a questão, bastante vista na literatura, do homem que visando o próprio lucro, rouba algo divino dos deuses e com isso sofre consequências geralmente negativas.