Na vila, todos o chamam de Rutenos, o vermelho,
provavelmente por causa de seu rosto carmesim, de sua pele queimada pelo fogo
de sua oficina, de seus fartos bigodes ruivos e de seus cabelos desgrenhados da
mesma cor.
Sempre alegre, de olhos risonhos afundados nas orbitas,
protegidos do fogo das chamas por sobrancelhas cabeludas, esse simpático
gigante de força legendária não é de forma alguma um homem como os outros e possui
certo prestigio.
Retumbando desde a aurora, o som claro de seu martelo sobre
a bigorna acorda cada manha, um bom número de habitantes da pequena aldeia.
Sabemos pela tonalidade de notas que escapam de seu atelier, o sentido do vento
e deduzimos qual tempo fará.
Graças a seu martelo mágico, Rutenos faz cantar o ferro. Sua
oficina é como um santuário onde, com a cumplicidade do fogo, ele doma o metal.
Sobre seus hábeis golpes surgem armas formidáveis utilizadas pelos guerreiros,
espadas, lanças, dardos, mas também as pacíficas ferramentas do camponês ou o
machado do lenhador.
Para os gauleses, Rutenos é um homem superior, um pouco
inquietante, dotado de um poder sobrenatural. Os segredos da metalurgia foram transmitidos
de seus longínquos ancestrais pelo deus ferreiro Ucuetis. Não se pode esquecer
que é o domínio sobre o ferro que dão aos celtas sua superioridade sobre muitos
povos, que só tinham à sua disposição, armas em bronze.
Nessa noite, Rutenos demora mais que o de costume em seu
atelier. Lá fora, a noite cai e o ferreiro se prepara para apagar as últimas
brasas que crepitam ainda no seu forno. Bruscamente, golpes violentos batem na
porta. Logo um homem penetra em seu atelier. Alto, sem camisa, com músculos
poderosos, ele está apressado. O ferreiro imediatamente nota o machado de corte
fraco que ele carrega na mão. Ele não tem nem mesmo tempo de perguntar ao
visitante a razão de sua intrusão intempestiva.
Esse último já falava: "você é Rutenos, o ferreiro, aquele
que ostenta o titulo de ferreiro incomparável? Eu lhe trago meu machado para
que tu refaças a lâmina". Intrigado, o ferreiro observa esse curioso cliente
vindo numa hora tão tardia.
- Anoiteceu e minha
oficina está fechada. Volte amanhã na aurora, então eu me ocuparei de teu
machado, responde com calma Rutenos. O que você cortou para que ela esteja em
tal estado? O desconhecido, aumentando o tom, recomeça com uma voz autoritária:
- É nesta noite que eu quero meu martelo, entendestes
Rutenos, esta noite! Ninguém faz Ésus esperar! E, ouvindo esse nome, Rutenos se
sobressalta. Ésus ! O cruel Ésus ! O lenhador divino! O decifrador
celeste! Aquele que os gauleses têm medo e pelo qual os druidas penduram as
vitimas nas arvores!
O ferreiro não é um homem medroso, mas a presença do deus
sobre seu teto não lhe agrada em nada e o incomoda. Rápido, ele acrescenta
carvão de madeira no seu forno e aciona o fole. Um brilho avermelhado ilumina a
peça, projetando nas paredes sombras dançantes. Rutenos coloca o machado de
Ésus no meio do forno e continua a ativar o fogo. Com a ajuda de um atiçador,
ele reagrupa sem parar as brasas sobre o fogo até que esse atinja a temperatura
esperada.
Então com sua longa pinça, ele retira o machado e o coloca
sobre a bigorna. Retirando seu mais pesado martelo, ele bate com golpes
redobrados sobre a ferramenta do deus d’onde saem uma chuva de faíscas. O ferro
se estende, se deforma, azulece pouco a pouco. Ele novamente faz o ferro
esquentar até ficar branco. O trabalho noturno de Rutenos intriga os aldeões.
Mas, como o temem, ninguém ousa perguntar nada.
Durante toda a noite, Rutelos martela o ferro do machado. O
suor cai de sua pele, cola sobre o bigode...ele não para que nos primeiros
raios da aurora. Ele apresenta então ao deus uma ferramenta perfeita, com
lâmina regular, afiada, uma obra-prima. Ésus parece satisfeito. Retomando seu
machado, ele desaparece rapidamente na neblina matinal, sem nem mesmo agradecer
ao ferreiro.
Rutenos, exausto, mas aliviado, pode enfim dormir. Como ele é um
pouco falador, ele guardará segredo de sua desventura e ninguém nunca conhecerá
a identidade de seu cliente noturno.
Les Légendes du Monde - traduzido do original em francês por Elantia Leto.